Em busca de santos catacumbais em Portugal

Estamos nos finais do séc. XVIII, algures na década de 1790. O pintor português José Teixeira Barreto, natural do Porto, visita Roma e decide trazer uma souvenir para oferecer aos pais. Como não consegue encontrar ímanes de frigorífico, opta por algo ligeiramente menos convencional: o esqueleto de um mártir Cristão. Dirige-se a um tal Cardeal Caprara para fazer conhecer a sua intenção, e lá consegue que lhe preparem e enviem para o Porto o esqueleto de Santa Clara, exumada das catacumbas romanas de Ciríaca em 1777.

Ou, pelo menos, é isso que a brochura informativa sobre Santa Clara tem a dizer sobre o assunto (excluindo a referência aos ímanes de frigorífico, que é 100% minha).


⚠️ Aviso: este post contém fotografias de restos mortais humanos.


Mas primeiro, contexto

Há um termo para identificar figuras como Santa Clara. Estes esqueletos arrancados às catacumbas Romanas que hoje decoram igrejas pelo mundo fora têm nome, mas a verdade é que não sei bem qual é. Em português, chamo-lhes santos catacumbais, nomenclatura que roubei da única tese que conheço sobre o assunto em Portugal, da autoria de Joana Palmeirão. Na mesma linha, há quem lhes chame catacomb saints e katakombenheiligen. Depois, ainda temos os corpisanti, nomenclatura usada pelo Corpisanti Project: International Network and Database. E finalmente, há quem lhes chame apenas relíquias, ou corpos de santos mártires, ou novos santos (em referência à sua entrada tardia nas igrejas Cristãs, suponho), ou simulacra (em referência ao facto de os esqueletos estarem envoltos em cera ou outros materiais que “simulam” uma aparência viva). Aos meus olhos de entusiasta-não-expert, santo catacumbal é o termo ideal para descrever santos que vieram das catacumbas–e portanto, é o termo com que vamos avançar.

Fui apresentada aos meus primeiros santos catacumbais em 2013, quando Paul Koudounaris lançou o livro Heavenly Bodies e deixou a internet de queixo caído. São páginas e páginas, brilhantes e imaculadas, impressas de margem a margem com fotografias de esqueletos humanos carregados de jóias–permitam-me a expressão–até ao tutano. É vê-los vestidos e couraçados a rigor, empunhando espadas com falanges a escorrer anéis, contemplando a eternidade com pedras preciosas no lugar dos olhos. Pomposas dos pés à cabeça, estas figuras nascem num espaço e num tempo específicos: Europa Central, pós-Reforma Protestante, quando as igrejas católicas se vêem depenadas de tudo o que é arte sacra e são, portanto, obrigadas a improvisar. Num momento de inspiração, a Igreja Católica olha para dentro–ou, mais especificamente, para as catacumbas debaixo da cidade de Roma, onde estavam sepultados milhares de Cristãos dos primórdios da fé.

Forma-se um plano. Levantam-se os ossos. Se não tiverem nome, baptizam-se. Escreve-se que cada esqueleto é mártir, santíssimo, que morreu pela fé durante o domínio Romano, e exporta-se como objecto de culto. Ou em Roma, ou no país de destino, vestem-se-lhe os trajes, calçam-se-lhe as luvas, põem-se-lhe os anéis. De ossos anónimos fazem-se santos, e os altares Católicos re-dignificam-se.

Esta é a história que Paul Koudounaris nos conta sobre os santos catacumbais da Europa Central. Talvez não seja a história de todos os santos catacumbais. Não será decerto a história dos santos catacumbais que chegaram a Portugal, até porque aqui nunca houve necessidade de re-dignificar igrejas dizimadas pela Reforma Protestante.

Essa foi a razão que me levou a pensar, inicialmente, que não teria sorte na minha busca por santos catacumbais em Portugal. A realidade provou o contrário: assim que comecei a procurar, afoguei-me naquele fenómeno em que, depois de nos cruzarmos pela primeira vez com uma palavra, começamos a vê-la em todo o lado. Portanto, visitei e fotografei alguns santos, reuni informação sobre outros, e cheguei agora ponto em que preciso de sistematizar e passar o dossier.

Este post nao é um artigo académico nem pretende ser (espero que os ímanes de frigorífico e o tom bacoco-barroco deixem isso claro), mas espero que seja, pelo menos, um compêndio. Uma lista de compras para entusiastas e, espera-se, alguns experts. Nunca vi estes santos todos juntos na mesma página, e muito menos reunidos sob o estandarte daquilo que provavelmente são, portanto aqui fica: a minha lista preliminar de santos catacumbais em Portugal.


Santa Clara

Nos dias que correm, Santa Clara é mais conhecida como Santa Clara do Bonfim, de acordo com o nome da igreja onde está exposta na cidade do Porto. Tem a sua própria vitrina (ou urna-relicário), a sua própria caixa de esmolas, e claro, a sua própria brochura informativa. Se parece que estou hiper-focada na brochura, é porque estou mesmo: Santa Clara é dos poucos santos desta lista cuja exposição vem acompanhada de material de leitura. A brochura em questão é Hollywoodesca, na medida em que atribui a Santa Clara pensamentos e diálogos que obviamente não são atribuíveis, mas o núcleo duro da história bate certo: Santa Clara viveu nos primórdios do Cristianismo, foi assassinada pela sua fé, e acabou sepultada nas catacumbas de Roma. Em 1798, chegou a Portugal acompanhada de uma tempestade. O pedigree de santo catacumbal está confirmado.

(Mas caso houvesse dúvidas, os acessórios da Santa ajudariam a confirmar: vem acompanhada de um ramo de palmeira e de um cálice com o seu próprio sangue, duas peças-chave do guarda-roupa catacumbal português.)

Santa Clara tem outra particularidade que não partilha com a maioria desta lista–é modesta. Está completa e opacamente vestida, sem pele nem osso à vista. O seu rosto, sereníssimo, parece ser feito de cera. Só nas costas da sua mão esquerda é que conseguimos ver, e isso se nos esforçarmos, um pequeníssimo pedacinho de osso.


Santo Aurélio e São Pacífico

Não muito longe de Santa Clara, Santo Aurélio e São Pacífico têm as suas próprias urnas na Sé do Porto. Da última vez que os vi, viviam numa arrecadação (o que justifica o aspecto circense destas fotos, iluminadas a telemóvel e flash), mas consta-me que foram movidos entretanto. Já escrevi sobre estes dois antes, e tudo o que escrevi foi citado da tese “Imagem-relicário de Santo Aurélio mártir pertencente à Sé Catedral do Porto“, da autoria de Joana Palmeirão, que estudou e restaurou Santo Aurélio em 2015.

Embora não saiba dizer exactamente quando é que chegaram ao Porto, Santo Aurélio e São Pacífico terão sido encomendados algures na década de 1740. O artigo “As encomendas de arte italiana de D. Fr. José Maria da Fonseca Évora (1690-1752)” refere que, “quando, em 1740, Fonseca Évora parte de Roma com destino ao reino, já na qualidade de bispo do Porto, deixa a Giuseppe Zarlatti o encargo de acompanhar a conclusão de diversas peças que encomendara, entre as quais […] ‘due Corpi Santi, nomati S. Aurelio, e S. Pacifico, quali essendo stati vestiti con ricche vesti ricamate d’oro, e collocati in due magnifiche Urne’.”

Ora, este duo catacumbal traz elementos novos que não vimos com Santa Clara. A dicotomia feminino/masculino torna-se óbvia. Santa Clara veste um vestido, puro e simples, mas Aurélio e Pacífico vestem trajes vagamente gladiatoriais decoradas com o chrismon, um antigo símbolo Cristão. São verdadeiros guerreiros pela fé, estes dois, e as espadas que trazem consigo confirmam esse estatuto. O ramo de palmeira, o cálice de sangue completam o visual, e um papelinho identificativo com o nome do santo terminam o visual.


São Silvério e Santo Eugénio

Quem parte da Sé do Porto e desce em direção à estação de S. Bento acaba frequentemente maravilhado pela fachada da Igreja dos Congregados. Se entrarem, poderão maravilhar-se ainda mais com não um, não dois, mas três santos catacumbais. Comecemos pela dupla Silvério-Eugénio, e já vamos ao terceiro santo.

Debati-me com a ideia de mostrar estas fotos, porque custa-me ver o estado de preservação (ou des-preservação) destas duas figuras, mas acabei por decidir fazê-lo. Se o objectivo deste post é congregar informação, então congreguemos informação.

Portanto, se ignorarmos o desalinho visual, São Silvério e Santo Eugénio seguem o mesmíssimo molde de Santo Aurélio e São Pacífico. Mesma pose, mesmos trajes gladiador-chic, mesmas coroas de flores. Silvério perdeu o cálice e Eugénio perdeu a espada, mas o visual é claramente o mesmo. Pela Europa fora, encontramos mais membros desta família: São Vincenzo (será Vicente?) e São Celestino em Itália, e São Feliks na Polónia, por exemplo. Chega-se a um ponto em que as semelhanças se tornam marcas de série, e a ideia da fábrica de santos começa a parecer real.

São Silvério e Santo Eugénio estão por estudar e restaurar, tanto quanto sei, e por isso não tenho muitas certezas sobre eles. Sei que já estavam na Igreja dos Congregados em 1877, segundo o “Guia do viajante na cidade do Porto e seus arrabaldes“, que refere que a Igreja “possue os corpos de S. Severino, Santo Eugenio, e S. Clemente“). Recuando no tempo, já a “Descripção topografica, e historica da cidade do Porto” tinha dito mesmo em 1789, referindo que ali podíamos encontrar “na Capella Mór os Corpos de S. Severino, e de Santo Eugenio, este da parte do Evengelho, aquele da Epistola, ambos estão depositados em Urnas preciosas, e assim mesmo o Corpo de S. Clemente Mártir”.

(Para quem, como eu, não sabia nada sobre Evangelhos e Epístolas até ler isto, o Priberam ajuda: o lado do Evangelho é o “lado do altar que fica à esquerda dos assistentes, onde é lido o Evangelho”, e o Lado da Epístola é o “lado do altar que fica à direita dos assistentes”.)

Um utilizador do fórum Geneall avança mais um dado, que não posso confirmar mas que deixo aqui como orientação: “1742, 1 de Março – entram no Porto os corpos dos Santos Mártires São Severino e Santo Eugénio, doados por El-Rei Dom João V. Estes corpos haviam sido entregues ao Monarca pelo Bispo do Porto Dom Frei José Maria da Fonseca e Évora; e pedido ao Monarca pelo Padre Domingos Pereira, do Convento de Lisboa.

É curioso como as fontes referem um São Severino mas a placa (posterior) que identifica o santo na Igreja dos Congregados se refere a ele como São Silvério. Não posso prová-lo, mas a minha teoria é que se trata de uma mera confusão e que o nome do santo se terá perdido com o tempo–tal como o papelinho identificativo que deveria ter na mão, mas não tem.


São Clemente

Embora partilhe a igreja com a dupla Eugénio-Silvério, São Clemente merece ser discutido à parte… porque supostamente é Papa. Tem uma plaquinha e tudo: “S. Clemente Papa-Santo, Ano 88 a 97”.

O problema é que Silvério e Eugénio também têm plaquinhas que lhes atribuem o estatuto de Papa, mas acabámos de estabelecer que são, muito provavelmente, santos catacumbais (e que há margem para questionar a veracidade da plaquinha de São Silvério com base no nome). Também vimos que as duas referências à Igreja dos Congregados mencionam os três santos em pé de igualdade, sem nunca referir alegados estatutos pontífices. O que fazer deste imbróglio?

(Curiosidade: também já vi este São Clemente, o São Clemente dos Congregados, referido como sendo o “único Papa sepultado fora do Vaticano.” Não percebendo eu nada de Papas, não tenho factos a avançar sobre o número de Papas que estão ou não sepultados fora do Vaticano, por isso nem vou tentar. No entanto, acho curioso que se alegue que este é o único Papa sepultado fora do Vaticano quando a própria igreja que o alberga tem mais dois “Papas”, todos eles identificados com placas? Como diria a Oprah, “what is the truth?”)

Vamos fazer aqui um exercício mental e aceitar a história. Vamos assumir que este é “o” São Clemente, Clemente I, Papa de 88 a 97, o quarto Papa da história. Ora, reza a história que Clemente I foi martirizado, mais especificamente atirado ao mar com uma pedra amarrada ao pescoço. O seu corpo terá sido recuperado e enterrado na Crimeia, e levado para Roma uns 800 anos depois, onde foi enterrado na actual Basílica de São Clemente. Dito isto, Kiev e Tenerife alegam ter relíquias de São Clemente, pelo que me parece justo que o Porto possa alegar o mesmo.

Talvez seja uma questão de redacção: talvez este não seja o corpo de São Clemente, mas apenas e só um fragmento, talvez o dente incisivo direito de São Clemente encerrado numa belíssima efígie de cera. Quem sabe? Eu não. Aguardam-se desenvolvimentos.


São Fortunato

Abandonemos o Porto em direção ao Norte. Estamos agora em Guimarães, na Capela da Nossa Senhora da Consolaçao e Santos Passos, e aguarda-nos uma audiência com São Fortunato. São Fortunato, exposto pela primeira vez em 1787, veste o mesmo estilo gladiador-chic do que os exemplos anteriores, mas não partilha a pose com mais nenhum santo desta lista. Passei uma hora na capela a observá-lo, de nariz quase colado do vidro, e cheguei a pensar que talvez não fosse um santo catacumbal. A textura do rosto, das mãos… dei por mim a pensar em São Torcato, ou na Santa Adelaide de Arcozelo, múmias naturais a quem se atribuiu o estatuto de santo por razões nada relacionadas com catacumbas Romanas.

Tanto matutei nisto que acabei por tropeçar no trabalho do arqueólogo Massimiliano Ghilardi, que esclareceu todas as questões. O primeiro paper que me chamou a atenção entitulava-se “La fabbrica dei martiri nella Roma di fine Settecento” e contava a história de um tal Antonio Magnani, artesão Romano, que terá produzido uma enormidade de santos catacumbais entre os fins do séc. XVIII e inícios do séc. XIX. De acordo com um segundo paper do mesmo autor, entitulado “Antonio Magnani and the invention of corpisanti in ceroplastic“, “Magnani e a sua oficina de artesãos produziram um grande número de corpisanti, todos essencialmente idênticos entre si nas poses, nas urnas, nos arranjos decorativos e nos trajes, quase como se fossem uma produção em série realizada a uma escala industrial. A única variante das vestes baseava-se no sexo dos mártires: homens vestidos como milites Christi, armados e couraçados; mulheres representadas como sponsae Christi, virginais e formosas“. Ao explorar estes artigos, deparei-me com uma nova “série” de santos catacumbais, com uma mão-cheia de exemplos de santos iguaizinhos a São Fortunato.


Santa Justina

Abrimos as hostilidades com uma senhora Santa no norte, e vamos terminá-las com uma senhora Santa no sul. Estamos em Lisboa, perto da Sé, na Igreja de Santo António. Talvez seja escusado dizê-lo, mas a Igreja de Santo António marca o suposto local de nascimento de Santo António de Pádua… vulgo Santo António. Quem entra na igreja pode virar à esquerda e seguir directamente para a cripta, para a parte Antonina do roteiro, mas quem preferir ficar pela entrada pode aproveitar a companhia de outra personalidade: Santa Justina.

Ora, tal como Santa Clara, Santa Justina tem os papéis em ordem. Dentro da urna-relicário, está acompanhada por uma humilde folha de papel que conta a sua história: terá vindo do cemitério de S. Lourenço, em Roma, em 1777.

A única questão sobre Santa Justina prende-se com a identidade que lhe atribuem quando a vêem–talvez induzidas em erro pelo facto de estarem numa igreja dedicada a Santo António de Pádua, várias pessoas presumem que esta donzela não é uma Santa Justina qualquer, mas sim Santa Justina de Pádua, uma mártir que viveu e morreu em Pádua, Itália, e cujo túmulo foi transformado na actual Abadia de Santa Justina. Nada em comum com esta Santa Justina, diria eu, mas o mal-entendido acontece na mesma.


& ainda…

A lista acima inclui apenas os santos que vi e fotografei. Proponho ainda à consideração:

  • Santa Vitória, Porto (Igreja da Lapa)
  • São Clemente, Braga (Santuário do Bom Jesus do Monte)
  • São Donato, Vila do Conde
  • São Fiel, Louriçal do Campo
  • São Vicente, “moço mártir”, Penafiel

& uma adenda…

Estamos em Setembro de 2022, ano e meio depois da publicação deste post, e venho recomendar a todos os interessados em santos catacumbais uma visita à página Artem Imperfecta no Instagram. Com um ano de história, esta página tem vindo a documentar de forma diligente os santos catacumbais em Portugal (e não só). É um projeto de inventário bem mais ambicioso do que o meu, e conta com um elenco vasto e sempre fotogénico; além dos protagonistas deste post, já por lá passaram muitas outras caras bonitas que vale a pena conhecer.

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