O Ferreira do Teatro Anatómico, 1902

Um dia destes, vadiando pelo site do Arquivo Municipal do Porto, tropecei nesta caricatura de um homem que trabalhara na Faculdade de Medicina do Porto. Datada de 1902–data em que a Faculdade de Medicina ainda não era, tecnicamente, Faculdade de Medicina, mas sim Escola Médico-Cirúrgica–, a caricatura mostrava um homem barbudo, de serra na mão, envergando uma camisa de xadrez. Era, segundo a legenda, “o Ferreira do Teatro Anatómico em 1902 segundo uma caricatura do Dr. Monterroso”.

(O Dr. Monterroso, fiquei a saber, era Manuel Aníbal da Costa Monterroso, médico e caricaturista que terminou o curso de medicina na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1902.)

Em “Assuntos”, a caricatura estava arquivada como “Ferreira. Fl. 1902, funcionário da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, o rapa-caveiras”, mas não havia mais nenhum documento atribuído ao mesmo tema–nem a mais pequena menção ao primeiro nome deste homem. Intrigada, fui investigar.

Não demorou muito até encontrar um artigo encantador sobre o nosso Ferreira, escrito por Joaquim Alberto Pires de Lima (outro médico, que concluiu o curso na Escola Médico-Cirúrgica do Porto em 1903) para o jornal “O Primeiro de Janeiro”, a 13 de Maio de 1925.

Embora repleto de descrições coloridas do nosso herói, o artigo também não lhe atribuía um primeiro nome. Vencida pela batalha, mas decidida a ganhar a guerra, concluí que teria de recorrer a métodos avançados nunca antes tentados por qualquer coscuvilheiro histórico, e ir procurar o nosso homem aos Anuários da Escola Médico-Cirúrgica do Porto (muito gentilmente disponibilizados online pelo Arquivo Digital da U.Porto).


Não custou nada: logo no primeiro anuário disponível, relativo ao ano letivo de 1906-1907, surge entre os serventes do “Theatro Anatomico” um tal “Manoel Ferreira”, que por lá continua nos anos letivos seguintes. A partir do ano letivo de 1911-1912, provavelmente por cortesia da Reforma Ortográfica de 1911, a ortografia passa a “Manuel Ferreira” e a “Teatro Anatómico”, mas o estatuto profissional do nosso homem mantém-se.

A partir do ano letivo de 1916-1917, “Manuel Ferreira” passa a servente do “Instituto de Medicina Legal” e do “Instituto de Anatomia”, onde se mantém também durante o ano letivo de 1917-1918. No último anuário disponível online, que cobre os anos letivos de 1919-1920 a 1926-1927, Manuel Ferreira já não aparece entre o pessoal nem do Instituto de Medicina Legal, nem do Instituto de Anatomia. É uma informação coerente com o artigo de Pires de Lima, que declara que “em 1918, uma hemorragia cerebral fulminou o pobre Ferreira”.


Conclusão: o caricatural “Ferreira do Teatro Anatómico” é, muito provavelmente, Manuel Ferreira, manipulador de cadáveres para os médicos portuenses durante pelo menos 16 anos, entre 1902 e 1918. (Pode ter começado a sua carreira mais cedo, tanto quanto sabemos, mas os Anuários não recuam para além de 1906. Monterroso retrata-o em 1902, sendo essa a primeira referência ao Ferreira neste conjunto de dados.)

(No seu artigo, Pires de Lima refere que o Ferreira “fôra educado pelos professores Pimenta e Lebre”, o que nos permitiria colocar o Ferreira no Teatro Anatómico já em 1900 com base na morte de João Pereira Dias Lebre–também caricaturado por Monterroso aqui ao lado–, que morre a 18 de Julho de 1900. No entanto, já sinto a corda a esticar. Teremos oportunidade, decerto, de esclarecer isto com mais detalhe num próximo episódio.)

Despeço-me com a transcrição do artigo de Joaquim Alberto Pires de Lima: “O Ferreira, do Teatro Anatómico”, um retrato tragicómico de um homem que, ao que parece, passava grande parte do seu tempo a limpar esqueletos humanos na companhia de insetos necrófagos e instrumentos de raspagem vários. Pelo vistos, também fazia negócios potencialmente obscuros com cadáveres. Um típico homem de ciência do século XIX, portanto.


Artigo de Joaquim Alberto Pires de Lima para o jornal “O Primeiro de Janeiro”, de 13 de Maio de 1925, transcrito a partir de digitalização do Arquivo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto:

A propósito do centenário da Faculdade de Medicina
O Ferreira, do Teatro Anatómico
Ao pessoal menor da Faculdade de Medicina do Porto

Numa tarde chuvosa de Outubro de 1897 fui á Escola adquirir uma colecção de ossos humanos para iniciar os meus estudos anatómicos. Transpondo ás escuras o longo corredor, parei á porta do Teatro Anatómico, onde o Ferreira, estrábico, barba por fazer ha longos dias, blusa curta de riscado, grossas chancas nos pés, preparava uma fornada de esqueletos para fornecer aos novos alunos.

Em quanto a chuva batia nos vidros do Teatro em grossas bátegas, o Ferreira, alumiado por uma vela de estearina cravada num sórdido castiçal de lata, regougando em voz cava e desafinada, a Avé-Maria de Lourdes, fazia ao mesmo tempo ranger o periostótomo, rapando os ossos, onde se apegavam mimosamente umas febras de carne muscular e onde aderiam com mais força retalhos de ligamentos, que tinham escapado á voracidade das larvas sarcófagas. Chamei-o da porta e o Ferreira, meneando largamente a cabeça, interrompeu o seu cântico «Ave, Ave-Maria !», dirigiu-se para mim, claudicando, a arrastar com pesado ruido as grossas chancas pelo lagedo.

Acompanhou-me á velha aula de Farmácia, onde se alinhavam numerosas colecções de ossos, brancos, perfeitos, mas donde emanava um cheio nada grato á minha pituitária sensível de noviço de Anatomia. Escolhi a minha colecção de estudo, enquanto o Ferreira, fungando uma longa pitada por um suspiro de chifre, as mãos e as roupas salpicadas de lôbregos residuos de corpos putrefactos, aligeirava o tempo contando anedoctas, em que o fundo moral ressaltava sempre, condimentado amiude por uma sentença latina. Muito me recordou esta scena macabra a do coveiro do «Hamlet»!

O velho moço do Teatro Anatómico fôra educado pelos professores Pimenta e Lebre, e tinha por eles uma veneração filial.

Não cheguei a ser aluno do professor Lebre; quando ele regeu o seu ultimo curso do 2.° ano de Anatomia, ainda eu frequentava O primeiro ano. Mas, por curiosidade, fui assistir um dia a uma lição dele. Sentado na sua cátedra, o velho Lebre chamava dois alunos para junto de de si e interrogava-os sobre a materia da lição anterior. Como o lente era surdo, um aluno, para isso eleito pelos camaradas, ditava as respostas ao condiscipulo que fôra chamado. Depois, o professor comrçava a preleccionar, primeiro sentado na cadeira, e depois de pé, em face do manequim desmontável ou do famoso aranhão dos centros nervosos. Durante a prelecção, um côro a boca chiusa soava na sala da aula, entoado por todos os alunos.

Havia um cadaver estendido na mesa, coberto por um pano de baeta vermelh, com uma larga orla negra. Quando o professor fazia uma demonstração no cadaver, envergava uma longa blusa de merino preto.

Durante a aula toda, que levava menos de duas horas, os alunos falavam ou cantavam sempre, e os seus côros eram por vezes acompanhados a instrumental. Por traz do mestre, o lente demonstrador assistia impassivel, sofrendo a custo um sorriso, e á porta da aula, hirto, solene, o Ferreira atendia prontamente á menor solicitação do Lebre.

Conta-se que, um dia, um aluno levou consigo um cãosito para a aula. Quando o concerto estava no seu auge, o pobre bicho entendeu também dever tomar parte. Mas ladrou alto de mais, o Lebre ouviu e desmanchou-se em impropérios contra os rapazes. Que se pozessem todos lá fóra! Os alunos levantaram-se, preparavam-se para obedecer, mas o cão adiantou-se no cumprimento da ordem e saiu da sala. O professor Lebre, acalmando os nervos, emendou: «Sentem-se! Já saiu o unico que tinha vergonha…»

O Ferreira não admitia que fizessem na sua presença a menor alusão desrespeitosa para o seu patrão. Mas as scenas passadas na aulas desculpava-as. Foi sempre zelozo, e acatava respeitosamente as ordens de todos os professores. Mas o seu verdadeiro, chefe, o que ele nunca deixou de venerar foi «o senhor doutor Lebre, de saudosa memoria!»

Era profundamente religioso, ajudava habitualmente á missa na egreja do Carmo de Baixo, e parece que oferecia para despezas do culto grande parte das suas economias.

O cirurgião Pimenta, como é notório, não era metódico nem previdente. Quando ele morreu, receou-se que deixaria a familia na miseria, por se esquecer de pagar as cotas do Montepio. Pois não se esqueceu disso o Ferreira: as contas, segundo me afirmam, foram regularisadas por ele durante os ultimos dias de vida do professor Pimenta.

Utilisava para fins comerciaes os pobres restos humanos: alugava ossadas aos estudantes, a cinco mil rei por colecção, e vendia oleo humano, bom para fazer nascer o cabelo, preparando-o no mesmo fogãosinho de gaz, onde cosinhava o seu jantar. Mas não perdoava que um aluno pronunciasse uma palavra menos cortez diante dum cadaver.

Tinha uma cega afeição pela Escola onde trabalhava e não permitia sem protesto que alguem se lhe referisse com desamor. Antigamente os internos do Hospital, antes de se recolherem, passavam á noite umas horas de palestra no Gabinete do Fiscal, onde aparecia tambem o Ferreira. Uma vez, estava eu de serviço, um medico recentemente formado fez uma criticaca severissima a certos actos da Escola. O Ferreira ouviu tudo, com acentuado mau humor, encostado á porta de entrada do gabinete. Quando o maldizente acabou, o Ferreira, fazendo oscilar repetidas vezes a cabeça, replicou-lhe de cara: «A Escola, para despejar do ventre certos alunos, precisava de tomar um quilo de cravagem; e são esses os que, depois, dizem mais mal dela!» E retirou-se, sem se despedir. O jovem medico, que aliás era inteligente e aplicado, não pôde articular qualquer resposta.

Os estudantes do meu tempo, conhecendo as altas qualidades moraes do Ferreira, tratavam-no afectuosamente e respeitavam-no.

No dia em que se punha ponto nas aulas, aparecia ele no corredor com um taboleiro cheio de frescos raminhos de flores. Cada aluno ia buscar o seu, em troca duma moedesita de tostãi e, assim, apareciam todos os rapazes de lapela [—?] no dia do encerramento das aulas. Com que saudade eu recordo essa tradução gentil que se perdeu!

Em 1918, uma hemorragia cerebral fulminou o pobre Ferreira. Fui visital-o ao Hospital da Lapa e encontrei-o imobilisado numa cadeira. Quase o desconheci, barbeado e limpo como estava. Anunciei-lhe que ia ve-lo e entregar-lhe uma pequena gratificação. «Eu já contava que a Escola não se esquecia de mim», disse o pobre velho, baixando muito a cabeça, para que eu não reparasse na comoção que não pôde vencer.

Celebra-se agora o 1.º Centenario da Fundação da Régia Escola de Cirurgia, precursosa da nossa Faculdade de Medicina. Recordam-se as nossas glorias em publicações comemorativas.

Na hora da festa não devemos esquecer os humildes colaboradores dos mestres. Sem auxiliares dedicados, não há ninguem que possa produzir qualquer coisa de util. Os humildes tambem colaboram nos factos que a historia rememora.

Como simbolo do perfeito moço de laboratorio, precisamos de apontar o ferreira, e não devemos esquecer tambem o velho porteiro das aulas Miguel Maia, modelo dos burocratas, que, durante meio seculo, serviu devotadamente, quase sósinho, a secretaria e a biblioteca. Conheci-o já na decadencia, quando ele, dispensado de todo o serviço, vinha ainda todos os dias, pontualmente á hora do costume, sentar-se na Biblioteca. Contava episodios da velha Escola e disse-me uma vez que tinha guardado, como piedosa recordação, um chapeu de palha que Julio Diniz lhe trouxera da Ilha da Madeira.

Lamentava-se da sua inacção o simpatico velhinho de olhar doce, com a face emoldurada por uma barba que parecia uma longa fita muito branca a unir as duas fontes, circundando o queixo. «Não me querem para nada!» dizia tantas vezes o velho Maia, com um sorriso triste…”

J.A. Pires de Lima

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