As Partes I e II deste post são uma adaptação de uma série de tweets de 6 de Fevereiro de 2023.
A Parte III, uma atualização, surge pela primeira vez neste post.
Parte I
Estava eu há uns dias no cemitério de Agramonte, deambulando sob as magnólias em flor, quando me lembrei de um jazigo misterioso que em tempos me chamou a atenção (way way back, algures antes da peste). Não me lembrava de grande coisa sobre o jazigo, mas sabia que era perto do jazigo municipal (banal) e que tinha uma série de cartões de oração colados à esquerda da porta (menos banal, misterioso até, sem dúvida digno de investigação numa solarenga tarde de Janeiro).
Pus-me a correr as ruas todas à volta do jazigo municipal, mas não encontrei nenhum jazigo com cartões de oração colados à esquerda da porta. Adivinhem lá porquê. Pois. Óbvio. Porque quando finalmente encontro o jazigo, os cartões já lá não estão.
Vamos falar um bocadinho sobre estes cartões. A maioria das pessoas não coloca cartões de oração no exterior dos seus jazigos de família. A maioria das pessoas nem sequer coloca objetos no exterior dos seus jazigos de família, geralmente falando. O meu neurónio da teorização lança-se num sprint: se estão cá fora, é porque quem os colocou não tem acesso ao interior; se são cartões de oração, estão a promover um qualquer tipo de culto; mas será um culto POR quem está no interior, ou um culto A quem está no interior?
A soleira da porta está cheia de velas. Há flores amarradas à porta de ferro. Espreito para o interior, e observo que o jazigo tem espaço para oito caixões. Do lado direito, homens. Do lado esquerdo, difícil dizer (esta falta de atenção será relevante daqui a nada). No “altar” do jazigo, vejo várias fotografias da mesma mulher (numa delas lê-se “Branquinha”), e uma única foto de um homem. Lembro-me, imediatamente, de um artigo que escrevi há uns anos.
(Foi em 2020 que escrevi sobre a Beata Alexandrina de Balazar, uma mulher que ficou conhecida por, entre outras coisas, não precisar de se alimentar. Alexandrina, tal como muitas místicas católicas, tinha um padre como seu “guia espiritual”.)
Quando vejo aquela parelha dentro do jazigo, concluo imediatamente que esta mulher é uma mística, talvez beata, talvez santa. O homem da foto é o guia espiritual. O jazigo é o templo. Os cartões e as velas e as flores são o culto.
(Se tivesse olhado com mais atenção para o lado esquerdo do jazigo, teria reparado que existe apenas um caixão à vista, e que sobre esse caixão se acumulam dezenas, possivelmente centenas de ex-votos em cera. Mas não olhei, e portanto não reparei.)
Confiante na minha hipótese, instalo-me ao sol, num banquinho de jardim, e começo a googlar santas Branquinhas e santas Brancas, mas não chego a lado nenhum. Quando googlo santas em Agramonte, descubro uma—mas não é esta. Chama-se Irmã Rita de Jesus. É uma freira franciscana em processo de canonização, e posso encontrá-la num “jazigo-capela branco […] no sector reservado à Ordem da Trindade”.
Lá vou eu em direção ao fundo do cemitério, onde não demoro muito a encontrar a Irmã Maria Rita de Jesus.
Tem um jazigo duplo (com um horário colado na porta, caso se queira visitar e/ou rezar no interior), um suportezinho para velas, e uma placa que a identifica como uma das muitas ilustres de Agramonte. Perto da Irmã Rita, sinto um je ne sais quoi de religião organizada que não está de todo presente no jazigo da potencial santa Branca ou santa Branquinha, que deixei lá em cima ao pé do jazigo municipal.
Parte II
Passa-se uma semana. Estou de volta a Agramonte, desta vez com companhia. A companhia veio ver as magnólias, mas daqui a nada será chamada ao dever de me ajudar a compreender o jazigo da potencial santa Branca.
A minha companhia repara em novos detalhes: desde a corrente enferrujada que serve de fechadura ao jazigo, ao estado de frescura irrepreensível das flores que vemos no interior. Reparamos finalmente nos ex-votos em cera que se acumulam do lado esquerdo do jazigo. Não conseguimos perceber se este espaço tem ou não manutenção regular, mas estamos cada vez mais confiantes: é santa, senhor, é santa.
Estamos ali em amena cavaqueira, possivelmente blasfemando, quando se aproximam duas pessoas. Trazem velas. Querem deixá-las em frente a este jazigo, por isso damos a nossa expedição por terminada. Afastamo-nos a passo largo. Já vamos no fim da rua quando decido dar meia volta (ou, nas palavras da minha companhia, “ter lata”) e interpelar estas duas pessoas. Não adoro a ideia de interromper um culto que ainda não sei se é real ou não, mas há que aproveitar a oportunidade quando ela surge. Pergunto quem é que está dentro do jazigo. Pergunto sobre a história desta mulher e deste local. Respondem-nos, e há coisas que parecem inventadas, que é Santa Branca.
Quem é Santa Branca, não sabem. Quem é o homem, não sabem, mas referem-se a ele como Santo Padre. De onde vem o culto, não sabem—mas sabem que a Santa faz milagres, todos eles comprovados pelos ex-votos no interior do jazigo.
Noto, pela forma como nos respondem, perfeitamente prestáveis mas sem grandes divagações, que estas duas pessoas não sentem necessidade de saber mais. Têm tudo o que precisam ali, nas suas velas e nas suas flores e nos ex-votos de outros crentes que por ali passaram. Agradecemos a ajuda. Pedimos imensas desculpas, desejamos muitas boas tardes, e afastamo-nos, agora de vez.
Termina aqui a porção narrativa desta aventura. Daqui para a frente só posso resumir: há duas “santas” em Agramonte. A primeira é uma freira franciscana; a segunda é uma mulher pouco identificada que pode ou não chamar-se Branca e que pode ou não fazer milagres. A breve conversa com os fiéis de Santa Branca pode parecer frustrante quando recontada em formato hiper-curto, mas tem valor. Não traz à luz novos factos, mas confirma que existe aqui um fenómeno real e não uma curiosa alucinação.
Parte III
Passa-se mais de um mês, e não fiz grandes descobertas–só tenho dois pequenos detalhes a acrescentar.
O primeiro é sobre o jazigo, ao qual encontrei referência num artigo intitulado “A Botica Do Hospital Real De Santo António”. O jazigo a que nos temos vindo a referir ao longo deste post, onde descansa a possível Santa Branca, é descrito como sendo o “jazigo-capela n.º 101, da secção 7 do Cemitério de Agramonte, de André Avelino Lopes Guimarães, datado de 1879”. Esta informação bate certo com os nomes dos homens que se encontram do lado direito do jazigo (referi-os no início do post), mas não nos diz rigorosamente nada sobre Santa Branca, ou sobre o seu culto. Afinal, as fotografias da mulher identificada como “Branquinha” aparentam ser muito mais recentes. Pessoas diferentes datarão as fotografias a partir de detalhes diferentes; eu opto pela figura de Nossa Senhora de Fátima, que nos coloca firmemente no século XX (para quem quiser pensar sobre isto, deixo aqui um artigo interessante sobre a evolução da iconografia da Nossa Senhora de Fátima).
O segundo detalhe que entretanto consegui apurar prende-se com a santa propriamente dita: a mulher pouco identificada que pode ou não chamar-se Branca e que pode ou não fazer milagres. Posso afirmar que, dentro do jazigo 101, repousa uma mulher chamada Branca Julieta de Sá Lemos. Morreu em 1952. Foi a mulher mais recentemente sepultada neste jazigo, e é a única que não partilha um apelido com o homem que o mandou construir, o tal senhor Lopes Guimarães.
Até agora, é o que sei.
Convido qualquer pessoa que tenha informações (ou dúvidas, ou questões, ou suspeitas) sobre este tema a enviar-me um email para contact@rafaelaferraz.com