Existe no Museu da Saúde, em Lisboa, um retrato de um “Dr. Ferraz de Macedo”. O retratado, que vamos presumir ser um médico porque ainda não lemos a etiqueta, tem um olhar amigável, caridoso, mas a sua expressão tem algo de tenso. Tem uma sobrancelha ligeiramente levantada, quase como se questionasse a intenção de quem o retrata. Os olhos são, ou estão, ao mesmo tempo, encovados e inchados. Tem um bigode farto, e uma barba num formato que não sei descrever em português—em inglês, chamar-lhe-ia “mutton chops”.
Informa a legenda ao lado deste retrato que estamos a escrutinar a aparência de João Ferraz de Macedo, nascido em 1838 e falecido em 1907. João foi, segundo a legenda, “o primeiro Diretor-Geral da Saúde, ficando na sua dependência a Inspecção-Geral dos Serviços Sanitários do Reino, a Repartição de Saúde e o Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública.” (João Ferraz de Macedo seria, portanto, a Graça Freitas do seu tempo.)
Quando vi este retrato pela primeira vez, em 2018, não sabia grande coisa sobre João Ferraz de Macedo. No entanto, tirei-lhe uma fotografia. Corre uma piada na minha família que diz que todos os Ferrazes são primos, e não quis votar este potencial parente ao (meu) esquecimento. Tirei uma foto, única, singela, mais registo do que propriamente composição artística, e continuei o percurso pelo Museu.
Os anos passaram e nunca mais me lembrei de João Ferraz de Macedo, o médico com ar simpático retratado na parede do Museu da Saúde. Nunca cheguei a investigar a sua ascendência para verificar se os Ferrazes são mesmos todos primos. Vivi em paz, que é o mesmo que dizer que em ignorância, até ao dia em que as minhas pesquisas pela imprensa oitocentista portuguesa começaram a gerar conclusões bizarras–o dia em que percebi que existiram dois Doutores Ferraz de Macedo, contemporâneos, quase vizinhos, que marcaram Lisboa de formas muito diferentes.
Aquele que não parava de se atravessar no meu caminho: o Dr. João.
Aquele que eu efetivamente queria investigar: o Dr. Francisco.
Contextualmente, João e Francisco são relativamente fáceis de distinguir. Um ficou para a história como o primeiro rosto da Direção-Geral da Saúde. O outro colecionava esqueletos. Um é lembrado como médico, o outro como antropólogo.
Partilharam o apelido. Viveram a poucos metros um do outro. Morreram ambos em 1907, mas divergiram na última morada: João foi enterrado no Cemitério dos Prazeres, e Francisco no Cemitério do Alto de S. João.
Serve este post para a) distinguir estes dois homens com dois brevíssimos esboços biográficos e b) estabelecer um trio de factos potencialmente úteis:
- As referências ao “Doutor Ferraz de Macedo” que surgem em documentação do séc XIX/XX não se referem sempre à mesma pessoa;
- Existiram dois Doutores Ferraz de Macedo em Lisboa no mesmo período;
- Os dois Doutores Ferraz de Macedo não são irmãos. (No entanto, não estou capaz de dizer se são ou não parentes.)
João Ferraz de Macedo (1838-1907)
Comecemos pelo homem do retrato, João Ferraz de Macedo, e pelas datas que limitam a sua vida. Nasceu a 26 de Fevereiro de 1838 na freguesia da Ajuda, Lisboa. Os seus pais eram João Ferraz de Macedo e Claudina Emília da Motta Ferraz. Casou na freguesia da Sé com D. Maria Carolina Cart Ferraz de Macedo (documento esse que ainda me ilude). Morreu a 3 de Janeiro de 1907 (tinha 68 anos), na sua morada na Rua Andrade, 11. O seu corpo foi depositado em jazigo no cemitério dos Prazeres.
João não é o Ferraz de Macedo que mais me interessa, mas não é por isso que não lhe vou dedicar mais algumas palavras. O percurso do senhor merece. Escreveu-se sobre ele, no Diário Ilustrado de 19 de Fevereiro de 1884:
“Aos 23 anos de idade acabou o seu curso, tendo obtido prémio em todos os anos. Ainda estudante do 3º ano da Escola Médica, quis o Sr. Conselheiro Andrade Corvo que ele fosse ao concurso de lente substituto da cadeira de Botânica da Escola Politécnica. Pouco tempo depois de ter concluído o curso, foi nomeado cirurgião do Hospital da Marinha, e em seguida cirurgião do Banco do Hospital de S. José, lugar que exerceu pelo espaço de 8 anos. […] Em 1879, por votação unânime e depois de um brilhante concurso, foi nomeado lente da cadeira de Clínica da Escola Médico Cirúrgica de Lisboa.”
Depois disto, foi enfermeiro-mor do Hospital de São José de 1890 a 1900, cargo que basicamente lhe atribuía autoridade máxima no hospital. Finalmente, chegou a Diretor-Geral da Saúde em 1900, cargo que manteve até à sua morte, em 1907. Numa sessão da Academia das Ciências de Lisboa, realizada após a sua morte, foi descrito como tendo sido um “abalisado professor, clínico notável, que dedicou grande parte da sua actividade à organização hospitalar“.
Fontes para esta secção:
Diário Ilustrado (19 de Fevereiro de 1884). Inclui um retrato de João Ferraz de Macedo.
Diretores-Gerais da Saúde. Documento da autoria da DGS. Refere João Ferraz de Macedo como “médico e professor de Clínica Médica na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (1861)” e “primeiro Diretor-Geral de Saúde e de Beneficência Pública”.
Livro de Registos de Batismos – Ajuda (Lisboa, Lisboa) – 1829 a 1839. O registo de batismo de João Ferraz de Macedo está na página “m0324”, na primeira posição da página direita. Refere nomes dos pais.
Livro de Registo de Óbitos – Anjos (Lisboa, Lisboa) – 1907. O registo de óbito de João Ferraz de Macedo está na página “m0004”, na primeira posição. Refere informações sobre o casamento.
Relatório dos Trabalhos da Academia Real das Sciências de Lisboa (16 de Junho de 1907). Refere João Ferraz de Macedo como “abalisado professor, clínico notável, que dedicou grande parte da sua actividade à organização hospitalar”.
Francisco Ferraz de Macedo (1843-1907)
Francisco Ferraz de Macedo é, efetivamente, o alvo da minha curiosidade. Nasceu em Paradela, Espinhel, Águeda, a 11 de Outubro de 1843. (A data de nascimento que lhe é normalmente atribuída é 1845, mas o registo de nascimento data claramente de 1843. Tenho mais uma razão, para além desta, para crer que 1843 é a data correcta, mas para já vou guardá-la para mim.) Era filho de António Ferraz de Macedo e Maria Rita dos Santos, ambos naturais de Paradela. Morreu a 28 de Janeiro de 1907 (tinha 63 anos) na sua morada na Calçada do Monte, 1. Foi sepultado no “primeiro cemitério”, uma forma contemporânea de referir o cemitério do Alto de S. João.
Francisco Ferraz de Macedo teve um percurso bastante polímata. Foi médico, antropólogo, criminólogo, pensador, poeta, tradutor. Foi, resumidamente, um rancho folclórico de personalidades que espero um dia ser capaz de resumir. Até lá, fica uma pequeníssima nota biográfica criada pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência:
Formado em Farmácia e Medicina, Ferraz de Macedo dedicou-se desde muito cedo aos estudos antropológicos, com destaque para a osteologia, as mensurações antropométricas e a criminologia. Sem nunca alcançar a docência, ocupou o cargo de Diretor dos Serviços Antropométricos e Fotográficos do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa já em final de vida.
Fontes para esta secção:
Coleção de Antropologia Ferraz de Macedo. Página da autoria do Museu Nacional de História Natural e da Ciência. (link alternativo)
Livro de Registos de Batismos – Espinhel – 1839 a 1858. O registo de batismo de Francisco Ferraz de Macedo está na página “m0046”, na terceira posição da página esquerda. Refere nomes dos pais.
Livro de Registo de Óbitos – 1º Bairro Lisboa – 1901 a 1911. O registo de óbito de Francisco Ferraz de Macedo está na página “m0108”, na última posição. Refere informações sobre o casamento.