Em 2017, escrevi um artigo viral sobre Diogo Alves, o famoso serial killer cuja cabeça está preservada na Universidade de Lisboa. Cinco anos depois, revisito o tema para corrigir as inexatidões que escrevi. Para contexto sobre o tema–ou sobre o meu artigo original–sugiro começar pela Parte I deste artigo. Para passar diretamente ao fact-checking, Parte II.
Parte I
Foi em 2017 que escrevi o meu primeiro artigo sobre Diogo Alves. Publicado no Atlas Obscura, um site americano conhecido pelas suas propostas turísticas alternativas, o artigo era relativamente curto, relativamente simples, e oferecia uma pequeníssima introdução ao tema Diogo Alves: O Serial Killer Cuja Cabeça Está Num Frasco.
A história tinha todos os ingredientes para dar certo: envolvia um serial killer, uma cena do crime uber-dramática (o Aqueduto das Águas Livres), uma condenação à morte por enforcamento, e uma cabeça humana dentro de um frasco. Envolvia grandes títulos e exageradas reputações (o primeiro serial killer português! o único serial killer português! o último condenado à morte! o único homem condenado e colocado num frasco!), e envolvia referências a pseudo-ciências, como a frenologia, que, embora datadas, continuam a ocupar o nosso imaginário.
O artigo saiu a 18 de Maio de 2017, e viralizou. As pesquisas para o termo “Diogo Alves” subiram a pique, e atingiram o seu máximo histórico no mês seguinte, Junho de 2017. Ao longo dos dias, semanas, e meses seguintes, publicações um pouco por todo o mundo reproduziram o meu artigo–e, note-se, as minhas fotografias–de forma pouco criteriosa. Por cá, a história apareceu no Correio da Manhã (“Portugal está nas bocas do mundo e a culpa é de um serial killer” 😐), no Jornal Económico, no Sol, e em vários outros portais mais ou menos informativos. Até o Nuno Markl comentou.
Neste período inicial, li praticamente todos os artigos que saíram sobre “a cabeça de Diogo Alves”, sempre afincadamente, sempre à procura de dados novos que me ajudassem a compreender melhor esta história fascinante. Nunca aconteceu. Os artigos eram todos iguais, e organizavam-se mais ou menos assim:
- Era uma vez um homem nascido na Galiza que veio jovem para Lisboa;
- Biscateiro por natureza, este homem decidiu um dia enveredar por uma vida de crime;
- Nos tempos em que o Aqueduto das Águas Livres funcionava como ponte pedonal, Diogo Alves fazia emboscadas aos peões, assaltava-os, e atirava-os da ponte. Matou mais de 70 pessoas. É, por isso, um serial killer;
- O Aqueduto foi fechado e Diogo Alves teve de mudar de vida. Formou uma quadrilha, e juntos assaltaram a casa de um médico. No decorrer do assalto, mataram quatro pessoas;
- Diogo Alves e a sua quadrilha foram apanhados e condenados à forca;
- Os cientistas preservaram a cabeça de Diogo Alves num frasco para poder estudar a origem da sua malvadez à luz da ciência frenológica;
- A cabeça ainda está no frasco hoje, e pode ser visitada;
- Fim.
Conheço bem a estrutura, porque o meu artigo também a segue. Não vou fingir que escrevi uma epopeia digna de um Nobel da Literatura–como disse, o meu artigo era relativamente simples, e servia-se de fontes igualmente simples. Não foi o primeiro artigo alguma vez escrito sobre Diogo Alves, nem o melhor. Foi apenas mais um, que por acaso viralizou.
Cinco anos passados, sou capaz de olhar para trás e concluir que não consegui nada de particularmente interessante ao viralizar esta história. Na prática, só ajudei a perpetuar mitos sobre Diogo Alves, os seus crimes do Aqueduto, e a sua cabeça. Que eu saiba, não produzi novos mitos nem meias-verdades sobre o tema; no entanto, pouco fiz para desmontar os que já vinham de trás. Sei que, na altura, fiz o melhor que podia com os recursos que tinha ao meu dispor; hoje, os recursos são outros, e portanto posso fazer melhor.
Parte II
A história de Diogo Alves e dos “crimes do Aqueduto” está envolva em mitos urbanos. No artigo que escrevi sobre o tema, em 2017, papagueei uma série destes mitos de forma pouco crítica. Vamos dissecar essas passagens, e discutir então a confusão à volta dos seguintes pontos:
- Diogo Alves foi um serial killer que matou 70 pessoas
- Diogo Alves foi o último condenado à morte em Portugal
- A cabeça de Diogo Alves nunca foi alvo de estudo
- A cabeça de Diogo Alves pertence mesmo a Diogo Alves
Comecemos:
1. Diogo Alves foi um serial killer que matou 70 pessoas
O que escrevi em 2017:
“He would await [his victims] on their return by nightfall, divest them of their gains by whatever means possible, and unceremoniously push them to their deaths. He repeated this sequence 70 times in the three years he was active in the Aqueduto […]”
O que escreveria em 2022:
Rezam as históriasfonte que, entre 1836 e 1839, Diogo Alves matou cerca de 70 pessoas no Aqueduto das Águas Livres, empurrando-as para a sua morte. No entanto, os documentos que nos chegaram não parecem apoiar esta teoria. Diogo Alves foi efetivamente julgado e condenado à morte por ter assassinado múltiplas vítimas, mas esses crimes não ocorreram no Aqueduto. Ocorreram na Rua das Flores, Lisboa, na noite de 26 de Setembro de 1839. Diogo Alves e a sua quadrilha assaltaram a casa de um médico e, no decorrer desse assalto, mataram quatro pessoas no interior da casa. Dias depois, mataram uma quinta pessoa, supostamente para ocultar factos sobre o malfadado assaltofonte. A lista de vítimas confirmadas de Diogo Alves resume-se, assim, a cinco pessoas.
O que dizem as fontes:
No seu processo judicialfonte, Diogo Alves (e companhia, mas não é a companhia que nos interessa hoje) foi responsabilizado pela morte de cinco pessoas, e consequentemente condenado à morte. Não há qualquer referência ao Aqueduto neste processo. Para citar os autores da Galeria de Criminosos Célebres em Portugalfonte “prova jurídica de tais crimes não existe”(p.126). Legalmente falando, documentalmente falando, os crimes do Aqueduto não existem.
Coloca-se então a questão: se Diogo Alves foi julgado e condenado por ter morto cinco pessoas, de onde é que vem esta ideia de que fez 70 vítimas no Aqueduto das Águas Livres? Quem são estas 70 pessoas, e quem é que as contabilizou, e a que propósito? A minha resposta preliminar a esta questão passa por Matos Sequeira, jornalista, que em 1916fonte escreveu o seguinte sobre o Aqueduto das Águas Livres:
“[…] Por 1839, começou a cidade a andar alvoraçada com o frequente aparecimento de cadáveres sob os arcos grandes da ribeira de Alcântara. Raro era o dia em que isso não sucedia. A opinião geral era que se tratavam de suicídios, mas pouco depois tomou novo curso, e a crença de que tais sucessos se não deveriam atribui a suicídios, mas sim a crimes sucessivos, entrou a dominar o espírito da pacata Lisboa. O criminoso apontava-se: era Diogo Alves. […] Da sentença de Diogo Alves nada consta com referência aos falados crimes dos Arcos das Águas Livres.”(p.435)
Tendo reconhecido, cem anos de nós, que Diogo Alves nunca fora formalmente acusado de nenhum crime no Aqueduto, Matos Sequeira continuou:
“Em Junho de 1839, já tinham chegado a setenta e seis os suicídios nos Arcos.”(p.435)
Sabemos que quem conta contos acrescenta pontos, e não é difícil imaginar como o tempo pode ter transformado esta afirmação em algo como “Diogo Alves matou 76 pessoas no Aqueduto até 1839.” Afinal, o mistério dos alegados crimes de Diogo Alves assenta precisamente na genialidade do seu modus operandi, na dificuldade de distinguir entre acidentes, suicídios, e homicídios cometidos no Aqueduto das Águas Livres. No limite, uma pessoa podia cair, atirar-se, ou ser atirada, e o aspeto do corpo seria sempre o mesmo aos olhos das autoridades. A referência a Julho de 1839 também ajuda a encaixar estas 70 mortes na narrativa de Diogo Alves, pois Diogo Alves e a sua quadrilha são detidos–e, assim, retirados das ruas de Lisboa–no final do Verão de 1839.
Bateria tudo certo, se não fosse o facto da imprensa Lisboeta continuar a reportar mortes no Aqueduto muito depois da prisão e morte de Diogo Alves. Na Revista Universal Lisbonense descreve-se, com um misto de desespero e humor negro, o “milionésimo quarto suicídio nos Arcos”(p.412). O calendário marcava o dia 26 de Maio de 1842fonte, mais de um ano volvido sobre a morte de Diogo Alves.
2. Diogo Alves foi o último condenado à morte em Portugal
O que escrevi em 2017:
“He was not the last man to be executed—at least six more followed him to the gallows between 1842 and 1845. Portugal would eventually rule out capital punishment in 1867.”
O que escreveria em 2022:
Diogo Alves tem a fama de ter sido o último condenado à morte em Portugal, uma honra dúbia que partilha, à vez, dependendo de quem conta a história, com Francisco Mattos Lobo. Diogo Alves foi executado a 19 de Fevereiro de 1841fonte, Mattos Lobo a 16 de Abril de 1842fonte, e nenhum dos dois é efetivamente merecedor deste título. Mais difícil, no entanto, é dizer quem é, ou contabilizar quantos outros homens foram executados nos 25 anos que separam a morte de Mattos Lobo e a abolição da pena de morte para crimes civis, em 1867fonte.
O que dizem as fontes:
Dando algum crédito ao meu artigo original, eu não digo, efetivamente, que Diogo Alves foi o último condenado à morte em Portugal. No entanto, menciono “outros seis” homens que supostamente terão sido condenados depois de Diogo Alves, entre 1842 e 1845–é este detalhe que me parece relevante discutir.
Como já não tenho acesso aos apontamentos em que me baseei para escrever o meu artigo original, não consigo dizer a que outros seis homens é que me estava a referir. Também não consigo dizer o que é que me levou a avançar, com tanta certeza, com o número seis.
Isto pode parecer difícil de aceitar, mas não existe propriamente uma lista, perfeitamente ordenada e organizada, a que possamos recorrer para responder a questões aparentemente tão simples como “quem foi o último condenado à morte em Portugal?” Existem listas, plural, mas a sua fiabilidade variafonte. Para além disso, existe ambiguidade de conceitos: quando falamos de “últimos condenados” no contexto de Diogo Alves e Francisco Mattos Lobo, não estamos à partida a discutir “condenados” mas sim “executados”. Também não estamos, à partida, a discutir crimes em geral, mas apenas crimes civis. (A abolição da pena de morte para crimes militares só chegará mais tarde.)
Por tudo isto, hoje não assinaria por baixo da afirmação “Portugal ainda executou mais seis homens depois de Diogo Alves.” Terá executado pelo menos dois, mas não me aventurarei para além disso. Um foi Francisco Mattos Lobo, em 1842; o outro foi José Joaquim “Grande” em 1846, esse sim com maior probabilidade de ser “o último condenado à morte em Portugal”fonte.
3. A cabeça de Diogo Alves nunca foi alvo de estudo
O que escrevi em 2017:
“[Portugal’s budding band of phrenologists] requested Alves’ head be severed and preserved for posterity, so the source of his criminal urges could be studied in depth. There is little evidence that such a study of Alves’ personality ever took place in the University, though similar ones did. The skull of Francisco Mattos Lobo, a contemporary of his who butchered a family of four and defenestrated their dog, was examined by phrenologists in April 1842 […]”
O que escreveria em 2022:
Se a cabeça de Diogo Alves está hoje preservada, tal deve-se provavelmente a José Lourenço da Luz Gomes, médico e fundador do Gabinete de Frenologia da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que a terá requisitado para estudos na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Não é claro se a cabeça de Diogo Alves foi efetivamente submetida a estudo frenológico imediatamente a seguir à execução, mas é possível—afinal, foi precisamente isso que aconteceu a Francisco Mattos Lobo em 1842, menos de um ano depois. Quase meio século depois, em 1896, as duas cabeças foram examinadas pelo antropólogo Francisco Ferraz de Macedo, que deixou as suas conclusões registadas na obra Galeria de Criminosos Célebres em Portugal.
O que dizem as fontes:
A ligação entre Diogo Alves e Lourenço da Luz Gomes foi “oficializada” em 2015, na exposição Passagens: 100 Peças para o Museu de Medicina. Na exposição, a cabeça de Diogo Alves estava exposta ao lado de um busto frenológico. O catálogofonte, editado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (a instituição “guardiã” da cabeça) e pelo Museu Nacional de Arte Antiga em 2005, dizia o seguinte:
“Graças aos esforços de Lourenço da Luz (1800-1882), fundador do Gabinete de Frenologia da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, o cadáver de Diogo Alves foi decapitado, ficando a cabeça do criminoso depositada naquela instituição. Ali viria a ser examinada à luz das teorias defendidas pelo célebre fisiologista alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), fundador da Frenologia (do grego phren, phrenos = espírito; logos = tratado), doutrina que pretendida estudar as faculdades intelectivas, afectivas e instintivas dos indivíduos a partir da configuração do crânio.”(p.285)
Esta descrição atribui, sem sombra de dúvida, a recolha da cabeça de Diogo Alves a Lourenço da Luz Gomes, mas a dinâmica exata dessa recolha não é clara. Se andarmos mais para trás no tempo e nos tentarmos aproximar da época em que tudo aconteceu, encontramos referências a Diogo Alves nos obituários de Lourenço da Luz Gomes. O Occidentefonte escreveu em 1882 que Lourenço da Luz Gomes “conseguiu a organização de um gabinete de phrenologia na escola médico-cirúrgica, para o que ali fez depositar os crâneos de Diogo Alves e Mattos Lobo”p.179. O Almanach Illustrado do Correio da Europafonte repetiu esta informação um ano depois, dizendo que “para animar os estudos da phrenologia, que despontavam apenas em Portugal, offereceu para o gabinete anatômico da escola medico-cirurgica, os craneos dos suppliciados Mattos Lobo, Diogo Alves e seus companheiros”(p.53). Fica por esclarecer, mesmo com esta informação extra, se o Gabinete de Frenologia já existia antes da execução de Diogo Alves, ou se Lourenço da Luz Gomes estaria na posse da cabeça a título privado, e que a teria depois “depositado” ou “oferecido” à Escola Médico-Cirúrgica juntamente com a de Francisco Mattos Lobo.
Esta confusão à volta da recolha e estudo da cabeça de Diogo Alves é, na minha opinião, importante, porque contrasta radicalmente com a total transparência à volta da recolha e estudo da cabeça de Mattos Lobo, que ocorre apenas um ano depois. No meu artigo de 2017, afirmei com certeza que Mattos Lobo “was examined by phrenologists in April 1842”, e podemos facilmente puxar das fontes que o comprovam. Francisco Mattos Lobo foi executado a 16 de Abril de 1842, e o seu percurso desde o cadafalso até à mesa de autópsias parece firme: é reportado na Revista Universal Olisiponensefonte que o seu cadáver foi “requerido para exames frenológicos”p.351 por médicos da Escola Médico-Cirúrgica no dia da execução, e que o transporte do mesmo foi feito no próprio dia. Os resultados do exame frenológico foram reportados, na mesma revista, dias mais tardefonte.
Foi com base nesta incerteza sobre a recolha e estudo da cabeça de Diogo Alves e certeza sobre a recolha e estudo da cabeça de Mattos Lobo que afirmei, no meu artigo original, que não existiam provas de que a cabeça de Diogo Alves alguma vez tivesse sido alvo de estudos. No entanto, elas existem. Só não surgem em 1841, logo após a execução, mas muito mais tarde, em 1896, quando entra em cena o antropólogo Francisco Ferraz de Macedo.
Em visita à Escola Médico-Cirúrgica, Ferraz de Macedo estudafonte “in loco a cabeça óssea de [Francisco Mattos Lobo], estendendo o [seu] trabalho minucioso a mais cinco exemplares que a acompanham, sendo entre eles o crânio de Diogo Alves e o de Ambrósio da Costa”(p.29). Ferraz de Macedo já não analisa estas cabeças propriamente como frenologista, mas como antropólogo–e, podemos dizê-lo, até como antropólogo criminal.
Armado com instrumentos de precisão, Ferraz de Macedo analisou estes crânios “e concluiu que os assassinos portugueses, comparados com os «normais», nada detinham de especial”fonte (p.97) Os resultados da análise de Ferraz de Macedo aos crânios de Diogo Alvesfonte e Mattos Lobofonte estão escritos em detalhe na Galeria de Criminosos Célebres em Portugal, onde são acompanhados por ilustrações das cabeças em questão. O que nos traz ao ponto seguinte:
4. A cabeça de Diogo Alves pertence mesmo a Diogo Alves
O que escrevi em 2017:
Tudo. O artigo inteiro assenta na premissa de que a cabeça que a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa tem num frasco é absolutamente, garantidamente, sem sombra de dúvida, a cabeça de Diogo Alves, criminoso galego executado em 1841 e decapitado para estudo frenológico na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.
O que escreveria em 2022:
Existe, hoje, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, uma cabeça preservada em meio líquido–ou seja, num frasco–que é comummente referida como pertencendo a Diogo Alves, assassino oitocentista condenado à morte (e executado) em 1841. Esta cabeça goza de alguma celebridade (e credibilidade): já esteve exposta, primeiro na exposição Passagens: 100 Peças para o Museu de Medicinafonte, em 2005, e depois em 2017 numa exposição alusiva à abolição da pena de morte em Portugalfonte. Já em 2021, a alegada cabeça fez a capa da Edição 28 da revista DN Históriafonte, dedicada aos criminosos do século XIX.
No entanto, nem sempre foi esta a cabeça atribuída a Diogo Alves. No séc. XIX haveria outra candidata: uma cabeça óssea, um crânio, portanto, que terá sido inventariada em 1886fonte como pertencendo a “Diogo Alves, ladrão e assassino, morto por suspensão”p.109. É esta cabeça que o antropólogo Francisco Ferraz de Macedo estuda, descreve, e ilustra em 1896, deixando a sua imagem imortalizada na Galeria de Criminosos Célebres em Portugal.
O que dizem as fontes:
Comecemos pelas fontes mais recentes, que nos estão mais próximas: o catálogo da exposição Passagensfonte, de 2005, descreve a peça que tem em exposição como “cabeça provavelmente de Diogo Alves (1810-1841), célebre criminoso”p.285. O “provavelmente” pode ser mera formalidade, ou pode querer indicar que estabelecer a provenance desta peça é mais complicado do que parece.
De facto, quanto mais recuamos no tempo, menos referências encontramos a “cabeças”, e mais referências encontramos a “crânios”. Os obituários de Lourenço da Luz Gomes, datados de 1882fonte e 1883fonte, mencionam “os crâneos de Diogo Alves e Mattos Lobo”p.179 e os “craneos dos suppliciados Mattos Lobo, Diogo Alves e seus companheiros”p.53. Crânios, não cabeças.
As referências a crânios batem certo com as observações posteriores de Ferraz de Macedo, que não só examina e desenha os crânios de Mattos Lobofonte e Diogo Alvesfonte, como também ajuda a robustecer a proveniência de ambas as peças. De facto, Ferraz de Macedo indica os números de inventário de cada um dos crânios (3043 e 3040, respetivamentep.28, p.109), e cita o catálogo de onde retirou esses dados: o Livro 1 do Registo das Peças Existentes no Museu de Anatomia da Escola Medico-Cirúrgica de Lisboa, organizado por Guilherme d’Oliveira Martins em 1886.
O livro Do Crime e da Loucurafonte, de 1933, repete esta informação, embora não seja claro se o autor a obteve independentemente, ou se está apenas a citar Ferraz de Macedo (como, aliás, faz noutras secções do livro):
“No Museu de Anatomia da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, existe um crâneo que prende a atenção do visitante estudioso, pelas várias anomalias ósseas que apresenta. Uma simples e amarelecida etiqueta nos esclarece: Segunda Secção, Anatomia Normal, Nº 3040, Cabeça de Diogo Alves, ladrão e assassino, morto por suspensão.”
Chegamos, portanto, a um impasse em que temos diferentes fontes a defender duas potenciais candidatas ao título de Verdadeira e Real Cabeça de Diogo Alves: de um lado, a cabeça no frasco, do outro, o crânio nº 3040. Não tendo nós capacidade de concluir sobre a credibilidade histórica de uma ou de outra, vamos abandonar os factos por um segundo e pensar apenas de forma prática, logística. Estamos em 1841, somos entusiastas da frenologia, e temos perante nós uma cabeça de um assassino, que nos importa preservar para estudo comparativo. O que fará mais sentido? Preservar a cabeça completa num frasco, ou preservar apenas o crânio? (Ninguém parece disputar a ideia de que, para Francisco Mattos Lobo e para tantos outros criminosos pelo mundo fora, a resposta foi “o crânio”.)
É precisamente esta a questão que é colocada no episódio 4 da série Portugal Secreto, produzida para o Canal Q em 2021fonte. No episódio em questão, numa visita à alegada cabeça de Diogo Alves que se encontra num frasco na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, o narrador expõe a seguinte dúvida: “Há quem questione a identidade da cabeça. Se a frenologia estudava o crânio, qual seria então a razão para conservar uma cabeça em formol?” Enquanto o narrador se debate com esta pertinente questão, a câmara demora-se sobre um crânio. Na base onde ele assenta, lê-se o número 3040.
O narrador abandona rapidamente o tema (“O que é facto é que a frenologia deu poucas ou nenhumas respostas acerca da propensão para a criminalidade.”) sem nunca explicar à audiência o foco no crânio nº 3040. Não será decerto coincidência: o crânio nº 3040 é o crânio que Francisco Ferraz de Macedo refere como pertencente a Diogo Alves na Galeria de Criminosos Célebres em Portugal, e quem produziu o episódio teve claramente acesso à obra (ou não estivesse ela em cima da mesa durante uma das entrevistas filmadas para o episódio).
Ao filmar a cabeça e o crânio no mesmo episódio, a série Portugal Secreto acaba por fazer de forma subtil aquilo que eu estou a tentar fazer aqui de forma explícita: reconhecer que existem dois objetos que, em diferentes momentos históricos, foram merecedores do mesmo título. O crânio, que detinha o título no século XIX e XX, parece ter ficado para trás, deixando a cabeça no frasco protagonizar agora a história no século XXI (como disse, ainda no ano passado foi capa de revistafonte).
Não me cabe especular sobre qual delas é “real”, se é que alguma delas o é. A cabeça pode ter prevalecido sobre o crânio porque tem uma proveniência mais credível; ou pode ter prevalecido porque é um melhor veículo para contar uma história sobre a criminalidade do passado, sobre as consequências reais da pena de morte, sobre as ciências e pseudo-ciências que ao longo dos anos têm vindo a motivar a preservação de corpos humanos. Não me cabe a mim desvendar essa parte da história. No entanto, sinto-me um tudo-nada responsável: tinha muitas certezas quando escrevi o meu primeiro artigo, em 2017, mas hoje, cinco anos depois, só tenho dúvidas razoáveis. Parece-me apenas honesto e transparente partilhá-las.
Despeço-me com uma anedota de 1897, provavelmente escrita por alguém que também tinha dúvidas razoáveis:
“N’um bric-a-brac, em Lisboa:
O sr deseja alguma curiosidade historica? Um capacete da idade média, um arcabuz; a espada de Affonso d’Albuquerque?
Nada… não quero.
O craneo authentico de Diogo Alves?
Já tenho um.”fonte
Fontes
150 Anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal. (2017). Descrição do Documento: Carta de Lei que aprova a Reforma Penal e das Prisões, com abolição da Pena de Morte. [link de acesso]
Como um enforcado mal morto ajudou Portugal a abolir a pena de morte. (2017, 5 de Julho). Público. [link de acesso]
Criminalidade no Portugal oitocentista. (2020, Outubro). Jornal de Notícias História, 28. [link de acesso]
Diogo Alves: Duas Palavras ao Leitor. (1896). In Galeria de Criminosos Célebres em Portugal: História da Criminologia Contemporânea: Vol. II (pp. 123–141). António Palhares.
Exame Phrenologico de Mattos Lobo. (1842, 28 de April). Revista Universal Lisbonense, 30, 356–357.
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa & Museu Nacional de Arte Antiga. (2005). Passagens: 100 Peças para o Museu de Medicina. Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa & Museu Nacional de Arte Antiga.
Ferraz de Macedo, F. (1896a). Mattos Lobo—Osteometria. In Galeria de Criminosos Célebres em Portugal: História da Criminologia Contemporânea: Vol. II (pp. 28–31). António Palhares.
Ferraz de Macedo, F. (1896b). Osteometria [de Diogo Alves]. In Galeria de Criminosos Célebres em Portugal: História da Criminologia Contemporânea: Vol. II (pp. 109–122). António Palhares.
Homicida absolutista foi o último condenado à morte em Portugal. (2017, 30 de Junho). Jornal de Notícias. [link de acesso]
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José Lourenço da Luz. (1883). Almanach Illustrado Do Correio Da Europa, 52–53.
Lopes, M. A. (2015). Mulheres Condenadas à Morte em Portugal: De 1693 à Abolição da Pena Última. In As Mulheres Perante os Tribunais do Antigo Regime na Península Ibérica (pp. 119–145). Imprensa da Universidade de Coimbra.
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