Procura-se: Santa Branca de Agramonte

Índice

Este artigo está em atualização. As secções foram publicadas neste site nas seguintes datas:
Parte I: 28 de Março de 2023 (originalmente no Twitter, a 6 de Fevereiro de 2023)
Parte II: 28 de Março de 2023 (originalmente no Twitter, a 6 de Fevereiro de 2023)
Parte III: 28 de Março de 2023
Parte IV: 21 de Outubro de 2024 (originalmente no Twitter, a 8 de Outubro de 2023)

Parte I: O jazigo

Estava eu há uns dias no cemitério de Agramonte, deambulando sob as magnólias em flor, quando me lembrei de um jazigo misterioso que em tempos me chamou a atenção (way way back, algures antes da peste). Não me lembrava de grande coisa sobre o jazigo, mas sabia que era perto do jazigo municipal (banal) e que tinha uma série de cartões de oração colados à esquerda da porta (menos banal, misterioso até, sem dúvida digno de investigação numa solarenga tarde de Janeiro).

Pus-me a correr as ruas todas à volta do jazigo municipal, mas não encontrei nenhum jazigo com cartões de oração colados à esquerda da porta. Adivinhem lá porquê. Pois. Óbvio. Porque quando finalmente encontro o jazigo, os cartões já lá não estão.

Vamos falar um bocadinho sobre estes cartões. A maioria das pessoas não coloca cartões de oração no exterior dos seus jazigos de família. A maioria das pessoas nem sequer coloca objetos no exterior dos seus jazigos de família, geralmente falando. O meu neurónio da teorização lança-se num sprint: se estão cá fora, é porque quem os colocou não tem acesso ao interior; se são cartões de oração, estão a promover um qualquer tipo de culto; mas será um culto POR quem está no interior, ou um culto A quem está no interior?

A soleira da porta está cheia de velas. Há flores amarradas à porta de ferro. Espreito para o interior, e observo que o jazigo tem espaço para oito caixões. Do lado direito, homens. Do lado esquerdo, difícil dizer (esta falta de atenção será relevante daqui a nada). No “altar” do jazigo, vejo várias fotografias da mesma mulher (numa delas lê-se “Branquinha”), e uma única foto de um homem. Lembro-me, imediatamente, de um artigo que escrevi há uns anos.

(Foi em 2020 que escrevi sobre a Beata Alexandrina de Balazar, uma mulher que ficou conhecida por, entre outras coisas, não precisar de se alimentar. Alexandrina, tal como muitas místicas católicas, tinha um padre como seu “guia espiritual”.)

Quando vejo aquela parelha dentro do jazigo, concluo imediatamente que esta mulher é uma mística, talvez beata, talvez santa. O homem da foto é o guia espiritual. O jazigo é o templo. Os cartões e as velas e as flores são o culto.

(Se tivesse olhado com mais atenção para o lado esquerdo do jazigo, teria reparado que existe apenas um caixão à vista, e que sobre esse caixão se acumulam dezenas, possivelmente centenas de ex-votos em cera. Mas não olhei, e portanto não reparei.)

Confiante na minha hipótese, instalo-me ao sol, num banquinho de jardim, e começo a googlar santas Branquinhas e santas Brancas, mas não chego a lado nenhum. Quando googlo santas em Agramonte, descubro uma—mas não é esta. Chama-se Irmã Rita de Jesus. É uma freira franciscana em processo de canonização, e posso encontrá-la num “jazigo-capela branco […] no sector reservado à Ordem da Trindade”.

Lá vou eu em direção ao fundo do cemitério, onde não demoro muito a encontrar a Irmã Maria Rita de Jesus.

Tem um jazigo duplo (com um horário colado na porta, caso se queira visitar e/ou rezar no interior), um suportezinho para velas, e uma placa que a identifica como uma das muitas ilustres de Agramonte. Perto da Irmã Rita, sinto um je ne sais quoi de religião organizada que não está de todo presente no jazigo da potencial santa Branca ou santa Branquinha, que deixei lá em cima ao pé do jazigo municipal.

Parte II: O culto

Passa-se uma semana. Estou de volta a Agramonte, desta vez com companhia. A companhia veio ver as magnólias, mas daqui a nada será chamada ao dever de me ajudar a compreender o jazigo da potencial santa Branca.

A minha companhia repara em novos detalhes: desde a corrente enferrujada que serve de fechadura ao jazigo, ao estado de frescura irrepreensível das flores que vemos no interior. Reparamos finalmente nos ex-votos em cera que se acumulam do lado esquerdo do jazigo. Não conseguimos perceber se este espaço tem ou não manutenção regular, mas estamos cada vez mais confiantes: é santa, senhor, é santa.

Estamos ali em amena cavaqueira, possivelmente blasfemando, quando se aproximam duas pessoas. Trazem velas. Querem deixá-las em frente a este jazigo, por isso damos a nossa expedição por terminada. Afastamo-nos a passo largo. Já vamos no fim da rua quando decido dar meia volta (ou, nas palavras da minha companhia, “ter lata”) e interpelar estas duas pessoas. Não adoro a ideia de interromper um culto que ainda não sei se é real ou não, mas há que aproveitar a oportunidade quando ela surge. Pergunto quem é que está dentro do jazigo. Pergunto sobre a história desta mulher e deste local. Respondem-nos, e há coisas que parecem inventadas, que é Santa Branca.

Quem é Santa Branca, não sabem. Quem é o homem, não sabem, mas referem-se a ele como Santo Padre. De onde vem o culto, não sabem—mas sabem que a Santa faz milagres, todos eles comprovados pelos ex-votos no interior do jazigo.

Noto, pela forma como nos respondem, perfeitamente prestáveis mas sem grandes divagações, que estas duas pessoas não sentem necessidade de saber mais. Têm tudo o que precisam ali, nas suas velas e nas suas flores e nos ex-votos de outros crentes que por ali passaram. Agradecemos a ajuda. Pedimos imensas desculpas, desejamos muitas boas tardes, e afastamo-nos, agora de vez.

Termina aqui a porção narrativa desta aventura. Daqui para a frente só posso resumir: há duas “santas” em Agramonte. A primeira é uma freira franciscana; a segunda é uma mulher pouco identificada que pode ou não chamar-se Branca e que pode ou não fazer milagres. A breve conversa com os fiéis de Santa Branca pode parecer frustrante quando recontada em formato hiper-curto, mas tem valor. Não traz à luz novos factos, mas confirma que existe aqui um fenómeno real e não uma curiosa alucinação.

Parte III: O nome da Santa

Passou-se mais de um mês, e não fiz grandes descobertas–só tenho dois pequenos detalhes a acrescentar.

O primeiro é sobre o jazigo, ao qual encontrei referência num artigo intitulado “A Botica Do Hospital Real De Santo António”. O jazigo a que nos temos vindo a referir ao longo deste post, onde descansa a possível Santa Branca, é descrito como sendo o “jazigo-capela n.º 101, da secção 7 do Cemitério de Agramonte, de André Avelino Lopes Guimarães, datado de 1879“. Esta informação bate certo com os nomes dos homens que se encontram do lado direito do jazigo (referi-os no início do post), mas não nos diz rigorosamente nada sobre Santa Branca, ou sobre o seu culto. Afinal, as fotografias da mulher identificada como “Branquinha” aparentam ser muito mais recentes. Pessoas diferentes datarão as fotografias a partir de detalhes diferentes; eu opto pela figura de Nossa Senhora de Fátima, que nos coloca firmemente no século XX (para quem quiser pensar sobre isto, deixo aqui um artigo interessante sobre a evolução da iconografia da Nossa Senhora de Fátima).

O segundo detalhe que entretanto consegui apurar prende-se com a santa propriamente dita: a mulher pouco identificada que pode ou não chamar-se Branca e que pode ou não fazer milagres. Posso afirmar que, dentro do jazigo 101, repousa uma mulher chamada Branca Julieta de Sá Lemos. Morreu em 1952. Foi a mulher mais recentemente sepultada neste jazigo, e é a única que não partilha um apelido com o homem que o mandou construir, o tal senhor Lopes Guimarães.

Parte IV: O incêndio

Entre Fevereiro e Outubro, deram-se três desenvolvimentos. O primeiro chegou via uma senhora simpática com quem me pus à conversa em Agramonte. Quando lhe perguntei por Santa Branca, respondeu-me que sim sim, conhecia bem “a Branquinha”. Não soube adiantar factos sobre a história de Santa Branca, mas pôde confirmar que “a Branquinha” é santa, sim senhora–não só porque faz curas, mas porque quando o jazigo ardeu (!!) ela ficou intacta.

Fiquei confusa. Tinha acabado de visitar o jazigo e não tinha visto qualquer sinal de incêndio. Prometi a mim mesma que verificaria as minhas fotografias assim que chegasse a casa.


Acima: o jazigo 101, em Janeiro de 2023 e Outubro de 2023.

Ao analisar as fotografias, confirmei: efetivamente, havia indícios de incêndio no interior do jazigo, já visíveis nas minhas primeiras fotos, de Janeiro de 2023. Conclui-se assim, portanto, que o jazigo de Santa Branca terá ardido em data anterior a 2023, como indiciado pela nossa testemunha e pelo chamuscanço no interior.

Mais: segundo a nossa testemunha, o facto de Santa Branca ter alegadamente resistido a este incêndio (o que queremos dizer com “resistir”?) é parte integral do culto.

O segundo desenvolvimento destes meses chegou-nos via o milagre da organização. Em Fevereiro referi que, em tempos, vira uns cartões de oração colados à esquerda da porta do jazigo de Santa Branca. Infelizmente, já lá não estavam em Janeiro de 2023.

Mas, contra todas as expetativas, estiveram sempre sãos e salvos num dos meus muitos discos externos. Encontrei-os há uns dias, numa foto datada de Agosto de 2019.

Interpretando estes cartões (que talvez não sejam cartões de oração no sentido que eu tinha em mente), ficamos a saber que Santa Branca, aka Branca Julieta de Sá e Lemos, nasceu em Mirandela, a 23 de Janeiro de 189-. Morreu no Porto (mas isso já sabíamos, ou presumíamos), a 12 de Maio de 1952.

O cartão descreve-a como “enamorada de Cristo”, “noiva de Cristo”, e “Virgem do Senhor”, e refere que “o único amor desta alma, foi Deus e a Sua Glória”. Parece-me razoável conjeturar, com base nisto, que Branca Julieta de Sá e Lemos nunca casou.

Concluímos assim o nosso segundo desenvolvimento: recuperámos os cartões que estavam no jazigo, e com eles aprendemos o local e data de nascimento de Santa Branca e, possivelmente, o seu estado civil.

O terceiro desenvolvimento é absolutamento inútil, mas não podia deixar de o trazer: o chão do jazigo de Santa Branca foi abaixo. O quadro de Santa Branca e o crucifixo de metal foram ambos parar ao piso inferior. É só isso. O jazigo de Santa Branca ficou sem chão. Nada a acrescentar. Acontece.

Conclusão

Convido qualquer pessoa que tenha informações (ou dúvidas, ou questões, ou suspeitas) sobre este tema a enviar-me um email para contact@rafaelaferraz.com

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